Esta pintura, agora amplamente aceite como uma obra de Caravaggio, apesar de algum ceticismo inicial, ainda não é inteiramente conhecida e merece alguma discussão.
O célebre mito de Narciso, também incluído nas Metamorfoses de Ovídio, fala sobre um caçador - jovem e bonito, porém sem coração - que cruelmente rejeitava todos os avanços amorosos. Como castigo, a deusa Némesis condenou -o a sofrer para sempre a dor do amor não correspondido. Apaixonou-se então pelo seu próprio reflexo visto numa fonte e - incapaz de se afastar - afogou-se ao tentar capturar o seu próprio reflexo. Em contraste à abordagem característica e original de Caravaggio, a maioria das representações deste conto utiliza um cenário externo pastoral, repleto de árvores e plantas.
Aqui, entretanto, um inesperado fundo escuro antecipa o fim de Narciso, e Caravaggio capta o momento em que o protagonista, tomado pela beleza do seu próprio reflexo, delicadamente acaricia a superfície da água, numa vã tentativa de seduzir o seu próprio reflexo. O magistral retrato capta perfeitamente a sensação maravilhada do protagonista - e suscita o mesmo sentimento no espetador - através do círculo quase perfeito criado por Narciso e o seu reflexo invertido, centrado no joelho brilhantemente iluminado.
Narciso, um tema profano, encaixa-se na abordagem Neoplatónica, muito popular no início da era moderna, para a cultura e literatura pagã. De facto, a pintura poderia ter sido apreciada como uma referência ao célebre aforismo grego γνῶθι σαυτόν (conhece-te a ti mesmo), no qual a auto-revelação é encorajada como um meio de se aproximar de Deus. Por outro lado, a intenção de Caravaggio pode ter sido a de avisar contra a vaidade do egoísmo e da beleza física, e para pedir aos espetadores para perseguirem virtudes além de si mesmos.
P.S. Narciso nunca deixou de fascinar artistas. Yayoi Kusama criou o Jardim de Narciso em 1966. Veja este lindo local aqui <3